Se
formos pedir a maioria das pessoas para exemplificarem o que elas entendem por
violência, prontamente poderão indicar dezenas e dezenas de matérias de
jornais, revistas e telejornais que mostram diuturnamente agressões a pessoas
ou a patrimônios alheios como sendo a mais pura expressão do fenômeno. A
violência é vista diretamente relacionada com a prática de infrações penais
contra o patrimônio e a vida ou no tráfico ilícito de drogas.
E
a esse tipo de crime considerado violento imediatamente se remete à figura do
marginal. O marginal é o pária da sociedade. É aquele indivíduo degenerado, que
merece ser punido exemplarmente e se possível excluído definitivamente da
sociedade. Marginal é o bandido, aquele ser abjeto, repugnante e cujo ódio que
ele mesmo causa e justifica a recente onda de linchamentos. É o homo sacer.[1]
Esse
conceito amplamente disseminado de violência, porém, me faz recordar um conto
já clássico de Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto). [2] Diz
o texto que uma velhinha passava na fronteira pilotando uma lambreta todos os
dias, carregando um saco de areia. Desconfiado, um dos agentes fez várias
batidas e nunca a flagrou transportando nada que não fosse o mero saco. Já
vencido pelo cansaço, fez uma proposta. Jurou que nunca faria nada contra ela,
mas implorou que dissesse o que contrabandeava. Ao que ela respondeu: lambreta!
Sob
uma mesma ótica ocorre o trato da violência. Usualmente, nós a percebemos
apenas como uma quebra do padrão “normal” de ordem ou de tranquilidade, através
de uma conduta que viole ou ameace a vida ou o patrimônio de alguém, que quebre
a paz de uma determinada comunidade, através de uma agressão materializada por
um ato que parte de uma pessoa ou de uma quadrilha ou bando. A qualidade de
“anormalidade” dessa concepção violência a torna tão facilmente perceptível.
Mas
para desvelar o que é violência, para sair da superfície, é preciso ir além.
Vamos primeiro fazer um alerta: a concepção acima é apenas um modo de enxergar
o fenômeno e certamente um modo por si mesmo violento de fazê-lo. Veremos mais
à frente o porquê dessa afirmação. Por ora, podemos com Slavoj Žižek[3] dizer
que à concepção usual de violência se dá o nome de violência subjetiva, em
contraposição à violência objetiva, cuja existência não é em geral
percebida, mas nem por isso deixa de condicionar a prática de atos que
diuturnamente o senso comum chama de violência.
A violência objetiva também conhecida
como violência sistêmica, não pode ser compreendida sob o mesmo ponto de vista
da violência subjetiva, uma vez que não é vista como anormalidade, mas sim como
algo corriqueiro, naturalizado no cerne das relações sociais. É ideológica,
passando ao largo da percepção dos que as sofrem e, muitas vezes, também dos
que as exercem.
Há ainda uma terceira ótica de visão
da violência e que complementa as duas primeiras. Trata-se da violência
simbólica, termo elaborado por Pierre Bourdieu. Caracteriza-se pela fabricação,
através do discurso, de falsas crenças que induzem o indivíduo a acreditar, a
consentir e a se comportar de acordo com os padrões desejados pelo Establishment.[4] Para ele, tal tipo de violência se realiza enquanto
produção simbólica e instrumento de dominação,
[…] enquanto instrumentos estruturados
e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os ‘sistemas simbólicos’
cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da
dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra
(violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força
que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber para a
‘domesticação dos dominados’”. [5]
Por exemplo, é violentamente simbólica
a ascendência do masculino sobre o feminino em boa parte das religiões, através
do discurso da mulher como “submissa” ao homem – a costela de Adão; foi
simbólica a violência exercida pelo invasor europeu contra os povos nativos das
Américas, no processo de submissão da cultura local e imposição da modernidade,
sob a alegação de que os nativos eram aculturados ou primitivos e precisariam
de “ajuda”; e a prática atual dos Estados Centrais, em especial os Estados
Unidos, de trazer a “liberdade” aos outros povos, escondendo as reais intenções
de usurpação e dominação estratégica do petróleo ou de territórios
geograficamente importantes. Essa violência é instrumental e estratégica, pois
tem o fim de anestesiar e domesticar os que a ela são submetidos. Igualmente é
simbolicamente violento o discurso da igualdade formal, que serve para
naturalizar o empobrecimento de largos estratos da sociedade de modo a promover
a iniquidade.
E imersos nessa violência que atua
como ideologia, até mesmo os submetidos a ela começam a crer que se tratam de
fatos naturais ou inevitáveis, etapas de um processo civilizatório evolutivo ou
constitutivo do mundo. E assim:
·
As abissais desigualdades econômicas e sociais são “naturais”;
·
O mercado dá iguais oportunidades a todos e os pobres (leia-se
empobrecidos) se encontram em tal situação por “culpa própria”, “inaptidão” ou
“preguiça” e não por causa de uma estrutura desigual que quase inexoravelmente
os limita;
·
Há, portanto, pobres de per si, por natureza, e não empobrecidos
por relações desiguais de poder que os fabricam, isto é, em razão de condições
artificialmente criadas de exploração e opressão do homem pelo homem;
·
As posturas contra-hegemônicas ou críticas são “radicalismo” e
utopia que atrapalham a ordem e a paz;
·
Os movimentos sociais que expõem a violência simbólica e
sistêmica são criminosos e liderados por pessoas que promovem o “caos”, a
“baderna” e a “desordem”;
·
Vivemos em uma verdadeira democracia, em que os eleitos os são
pelo voto popular, a despeito das odiosas doações de campanha por empresas
claramente interessadas em futuros ganhos, da compra de votos e do “caixa
dois”;
·
Há “liberdade de imprensa”, apesar do comum controle oficioso e
ilegal dos meios de comunicação em massa pela cúpula da classe política, e da
sua utilização estratégica para produzir “realidades” em favor dos seus
interesses eleitorais e econômicos, em prejuízo da democracia.
Essa
“normalidade” produzida/mantida pela violência simbólica é a violência objetiva
ou sistêmica. E assim, as favelas passam a ser normais no cenário e a pobreza,
algo aceitável, natural ou salutar (os melhores vencem). E sempre há o Natal
para se enxergar por uns dias a pobreza, condoer-se dela por um átimo e expiar
a culpa na caridade sazonal para, então, poder-se dar às costas até o próprio
período natalino.
Socorrendo-me de Heidegger[6] e Paul
Ricoeur,[7] dois
conceitos inter-relacionados terminam sendo relevantes e inevitáveis nessa
relação homem-mundo em que estamos mergulhados: a ipseidade e a alteridade,
entendendo:
1. Ipseidade: um
voltar-se para si mesmo (do latim ipse,
a, um, “mesmo”), um fechamento e uma diferenciação entre o ser e o exterior;
2. Alteridade: um
olhar para o outro, uma mirada para compreender sob a ótica de quem nos é
externo (do latim alter,
“outro”).
A relação
entre ipseidade e alteridade é sempre tensa e o ponto de equilíbrio reside na
consideração de que o diferente nem é mais e nem menos importante, nem tem mais
e nem menos valor. Trata-se de uma relação de comunicação (comunhão das
diferenças) e não de dominação (hierarquização das diferenças). O equilíbrio se
dá pela assimilação de que o diferente de nós tem dignidade. Dignidade não tem
medida porque é uma característica ontológica, imanente ao ser. É aí que reside
o hardcore, o
núcleo do conceito de igualdade humana e a pedra de toque da ética.
Na violência, há um desequilíbrio
dessa relação, com a sua polarização. Assim, é violenta a situação de
desconsideração do outro (ser somente para si; ser contra o outro – imposição),
como também a é a desconsideração de si próprio (ser somente para o outro; ser
contra si mesmo – submissão). Esmaga-se a diferença nas duas situações. Ou só o
outro para si; ou o si mesmo só para o outro. Essa desconsideração coisifica,
pois desumaniza o ser submetido à violência.
Há dois dados que podem ser
confrontados, demonstrando a correlação entre as violências subjetiva e
objetiva (apenas na modalidade sistêmica, pois a simbólica, por se exercer pelo
discurso, exige uma análise qualitativa e não quantitativa): são eles a
desigualdade de socioeconômica, como externalização da violência objetiva, e o
percentual de homicídios, como expressão mais clara da violência subjetiva
contra o bem mais precioso: a vida.
Estudo da ONU, “Global Study on Homicide 2011”[8] concluiu
que embora as pessoas cometam homicídios dolosos por muitas razões, há um
consenso, tanto entre os estudiosos quanto entre a comunidade internacional, de
que a violência letal tem forte ligação com contextos de escassez e privação,
iniquidades e desigualdades, marginalização social, baixos níveis de educação e
um Estado de Direito que não se efetivou ou que não é forte.
Cabe asseverar que, especialmente em
nosso país, o Estado Social historicamente não passou de um simulacro, com a
naturalização das desigualdades sociais, agora por meio do discurso neoliberal
(violência simbólica) que domina nosso cenário atual. Não por outro motivo, o
Brasil é o 23º nesse índice de violência subjetiva,[9] com uma
média de 22,7 homicídios por 100 mil habitantes. E no de violência objetiva,
também o 16º mais desigual do mundo.[10] No
Índice Global da Paz,[11] criado
para analisar a nível global os esforços pela paz, tanto de caráter interno
como externo, ficamos no nada honroso 83º lugar, em um universo de 158 países.
Podemos concluir que o Brasil é um país extremamente violento, subjetiva e
objetivamente.
Na seara penal, aliás, a violência
objetiva se expressa com bastante força, haja vista a patente seletividade do
sistema penal, já há tanto denunciada por nós.[12]
A violência subjetiva tão alarmada nos
meios de comunicação em massa é a ponta do iceberg. O que a sustenta é a
violência corporificada no discurso (simbólica) e na naturalização (violência
sistêmica) de situações de extrema desigualdade e desconsideração da pessoa
humana dos membros das camadas mais sofridas, numa patente deturpação do
equilíbrio da relação ipseidade-alteridade. O ter para si, desconhecendo,
desmerecendo e sendo contra o outro, torna-se banal. E nessa equação de
desigualdades e indignidades, formamos um ciclo vicioso de violência e ódio.
A violência simbólica atualmente anda
tão em evidência nas manifestações de ódio racial, xenofobia e homofobia. Há a
insatisfação com a quebra da secular ordem injusta e o que não a representa é
visto como o caos. O Outro existe agora e tem voz. Isso incomoda e amedronta. A
impossibilidade de reconhecer o outro para então conhecê-lo, de tolerar a
diferença e de realçar o respeito não há onde a violência sistêmica está
enraizada. Vivemos uma catarse em que o fascismo sai das sombras e mostra seus
caninos.
Assim, um país como o Brasil, com os
indicadores sociais tão violentos (objetivamente falando) termina por ter altos
índices de violência subjetiva, inevitavelmente. Como costuma dizer Antonio
Garcia-Pablos de Molina, “cada
sociedade possui a criminalidade que produz e merece”. Não se
resolverá o problema da violência – objetiva e subjetiva – com o direito penal
assim como não se apaga fogo com combustível.
É preciso, portanto, o desvelamento, a
percepção da violência que se manifesta de maneira sub-reptícia. Um olhar com
alteridade, partindo de lá, além das nossas fronteiras individualistas e
egoístas, que somente uma viagem ao encontro do Outro pode permitir. E quem
sabe, conhecendo o Outro, possamos nos conhecer melhor. Uma passagem do Pequeno
Príncipe ilustra muito bem e poderia nos inspirar nessa caminhada: “Adeus, disse a raposa. Eis aqui o meu
segredo. É muito simples: só se vê bem com o coração. O essencial é invisível
aos olhos”.[13]
Notas e
Referências:
[1] “The
sacred man is the one whom the people have judged on account of a crime. It is
not permitted to sacrifice this man, yet he who kills him will not be condemned
for homicide; in the first tribunitian law, in fact, it is noted that ‘if
someone kills the one who is sacred according to the plebiscite, it will not be
considered homicide.’ This is why it is customary for a bad or impure man to be
called sacred.” (AGAMBEN, Giorgio. Homo sacer: sovereign power
and bare life. Stanford: Meridian, 1998, p. 71).
[4] No sentido da elite que controla social e
economicamente toda a sociedade, através das instituições públicas (p. ex.:
forças policiais) ou privadas (p. ex.: meios de comunicação social).
[5] BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução
de Fernando Tomaz. 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003, p. 11.
[6] De Heidegger, a concepção de Dasein, de
ser-aí, mas não o ser autossuficiente da filosofia da consciência, que constrói
seu objeto de conhecimento. Ser-aí é ser-no-mundo, é ser-consigo-mesmo e
ser-com-os-outros. “Na base desse ser-no-mundo determinado pelo com, o mundo é
sempre o mundo compartilhado com os outros. O mundo da pre-sença é mundo
compartilhado. (N36) O ser-em é ser-com os outros. O ser-em-si intramundano
destes outros é co-pre-sença.” (HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Tradução de
Márcia de Sá Cavalcante. 8. ed. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 170). E em outra
passagem, “O ser-com determina existencialmente a pre-sença mesmo quando um
outro não é, de fato, dado ou percebido. Mesmo o estar-só da pre-sença é
ser-com no mundo. Somente num ser-com e para um ser-com é que o outro pode
faltar. O estar-só é um modo deficiente de ser-com e sua possibilidade é a
prova disso” (HEIDEGGER, Martin. Ser
e tempo. Tradução de Márcia de Sá Cavalcante. 8. ed.
Petrópolis: Vozes, 1999, p. 172).
[8] ONU. United Nations Office on Drugs and
Crime. Global study on
homicide 2011. Viena: United Nations Office on Drugs and Crime,
2011.
[9] ONU. United Nations Office on Drugs and
Crime. Global study on
homicide 2011. Viena: United Nations Office on Drugs and Crime,
2011, p. 92-96.
[10] CENTRAL INTELIGENCE AGENCY. The World Factbook: distribution of family
income – gini index. Disponível em: <https://www.cia.gov/library/publications/the-world-factbook/rankorder/2172rank.html>.
Acessado em: 24 jul. 2014.
[11] O referido indicador foi criado pela “The
Economist”, em parceria com a Universidade de Sydney, Austrália; Universidade
de Londres, Reino Unido; e com a Universidade de Uppsala e o Instituto
Internacional de Pesquisas pela Paz de Estocolmo, ambos na Suécia. Cf. THE INSTITUTE for economics and peace. Global peace index. Sydney:
Institute for Economics and Peace, 2012.
[12] STRECK, Lenio Luiz; SANTOS JÚNIOR, Rosivaldo
Toscano dos. Do direito penal do inimigo ao direito penal do amigo do
poder. Revista de Estudos
Criminais, ano XI, nº 51, p. 33-60. São Paulo: ITEC; SÍNTESE,
out.-dez. 2013.
Rosivaldo
Toscano Jr. é doutorando em direitos humanos pela UFPB, mestre em direito pela
UNISINOS, membro da Comissão de Direitos Humanos da Associação dos Magistrados
Brasileiros – AMB, membro da Associação Juízes para a Democracia – AJD e juiz
de direito em Natal, RN.
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